As alterações ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), conhecido como “Lei dos Solos”, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, posteriormente alterada pela Lei n.º 53-A/2025, de 9 de abril, têm gerado um debate aceso entre os profissionais do setor imobiliário. O alcance e as potenciais implicações destas alterações deram o mote ao seminário “Os impactos no mercado imobiliário das alterações à ‘lei dos solos’ (RJIGT)”, promovido pelo Imojuris e a SRS Legal, com o apoio da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários – APPII e da Vida Imobiliária, no dia 28 de maio, no auditório da SRS Legal, em Lisboa.
Envolta em alguma polémica, esta alteração assumiu um protagonismo que gerou muita desinformação. A começar pela sua designação, pois, como fez questão de esclarecer Alexandre Roque, sócio da SRS Legal no Departamento de Direito Público, “não foi alterada nenhuma lei dos solos, que aliás nem existe, o que existe é uma Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, que não foi o diploma alterado. O que foi alterado foi o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, ou seja, o diploma que regula a elaboração dos planos de pormenor, dos planos de urbanização”. Na sua opinião, o comentário público foi “bastante demagógico” e garante que “não é por uma empresa ter como objeto transações imobiliárias ou ter terrenos que vai enriquecer, nem a REN vai acabar, nem vão deixar de existir solos agrícolas”.
Entre as alterações que suscitaram maior polémica destacam-se o regime especial de reclassificação de solo rústico para solo urbano com finalidade habitacional e os efeitos do incumprimento do prazo para a inclusão nos Planos de Pormenor, Planos Diretores Municipais (PDM) e Planos de Urbanização das regras de classificação e qualificação do solo. Estas e outras matérias motivaram uma avocação do decreto-lei do Governo pela Assembleia da República para apreciação parlamentar do diploma. Após uma ronda de negociações na especialidade, a Lei n.º 53-A/2025, de 9 de abril, que altera o Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, recuperou, com algumas exceções, um dos critérios antes exigidos para a reclassificação para solo urbano, concretamente, a demonstração da viabilidade económico-financeira da proposta, assim como, a demonstração do impacto da carga urbanística no sistema de infraestruturas existente. Já quanto ao regime especial de reclassificação para solo urbano com finalidade habitacional e usos complementares, foi recuperado o requisito da contiguidade com o solo urbano e substituído o critério de ‘valor moderado’ por arrendamento acessível ou habitação a custos controlados. A reclassificação para solo urbano com finalidade habitacional e a alteração simplificada de planos territoriais, que não ocorram em solo de propriedade exclusivamente pública, passam a depender de parecer não vinculativo da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). E, por outro lado, foi reduzido de cinco para quatro anos o prazo para concretizar as obras de urbanização no solo reclassificado, prazo que pode ser prorrogado, uma só vez, pelo período de um ano.
A suspensão das normas relativas às áreas urbanizáveis ou de urbanização programada, por incumprimento da obrigação de inclusão nos planos das regras de classificação e qualificação do solo até 31 de dezembro de 2024, é decretada pela CCDR após audição do município e deixa de se aplicar às áreas cujos parâmetros urbanísticos já tenham sido definidos pela câmara municipal, através da aprovação de pedido de informação prévia ou projeto de arquitetura.
“Vivemos num quadro legal que é esquizofrénico”
Apesar da diversidade de perspetivas, existiram vários consensos durante a mesa de debate a começar pela necessidade de reconhecer as especificidades de cada município e de cada projeto. “Há realidades muito distintas ao nível do território” e, na opinião da arquiteta Paula Cabral, Diretora do Departamento de Gestão Urbanística da Câmara Municipal de Oeiras, esse deve ser o ponto de partida para encarar esta alteração legislativa, cujo impacto antecipa ser maior nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. “Ainda que com preocupações na contenção dos perímetros urbanos, não é possível estagnar o desenvolvimento de uma cidade”, alertou. Para Paula Cabral, o desafio no acesso à habitação não é de hoje. “Somos um país com uma grande tradição em crises de habitação”. No período entre os anos 60 e 90 “assistiu-se à construção de bairros de barracas e ao surgimento das chamadas Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGI), nas periferias das cidades de Lisboa e do Porto, consolidando-se um tipo de ocupação intensiva e desordenada”, recordou a arquiteta, situações que “deixaram marcas ainda hoje bem visíveis no território”, rematou.
Já o Diretor Municipal de Desenvolvimento Urbano da Câmara Municipal de Almada, arquiteto Paulo Pais, fala de Almada como um caso paradigmático. “Chegamos a 80% do território em REN bruta e isto é um absurdo. O quadro legal é anti-planeamento. O planeamento é uma visão sistémica em que se faz uma ponderação de interesses e o que temos é uma disfunção, porque se dizemos que tudo tem de ser protegido acabamos por não proteger absolutamente nada e o resultado é um desordenamento do território”, criticou. Esta alteração ao RJIGT “é um mecanismo que aumenta a autonomia dos municípios”, mas não tem grandes expectativas relativamente à sua aplicabilidade. “No caso de Almada, não é um mecanismo que estejamos a pensar em utilizar. Temos outros instrumentos, no âmbito da revisão do Plano Diretor Municipal, designadamente, a cedência para habitação pública. Temos muito património público do Estado, do IHRU, com quem temos um protocolo para a construção de 3.500 fogos de habitação acessível”, referiu. “Vivemos num quadro legal que é esquizofrénico, em que a lei de bases diz que a regra é a reabilitação urbana, o regime jurídico refere que a regra é a urbanização, e depois há ainda um regime especial de reabilitação que, afinal, não é o geral”. A questão é que “o problema não se resolve com regimes de exceção sobre regimes de exceção”, concluiu.
Na perspetiva dos promotores privados, Cláudia Beirão Lopes, Diretora da Reify e Membro do Grupo de Trabalho da APPII de acompanhamento da revisão do RJIGT, admite que “esta alteração abre uma oportunidade e o próprio preâmbulo do diploma diz isso mesmo, esta não é a medida, é uma das medidas que se pretende venham a ser implementadas para resolver os problemas da habitação”. Não obstante, aponta fragilidades evidentes ao modelo criado, a começar pela afetação de, pelo menos, 70% da área total de construção acima do solo a habitação pública, arrendamento acessível ou habitação a custos controlados. “Quem trabalha com o mercado imobiliário tem de fazer um business plan e o business plan que conhecemos hoje não é tão otimista. Por um lado, as margens do lado da atividade já estão comprimidas, em virtude dos custos de construção e da dificuldade em obter mão-de-obra e, por outro, porque nós estamos a ‘fechar’ o resultado de um projeto que vai ganhar vida daqui a três, quatro ou cinco anos... Há um risco associado a este modelo 70/30 que, à data de hoje, o torna desinteressante”. Reconhece, contudo, que “há um perfil de investidor para quem este modelo pode ser adequado”. “Poderá eventualmente ser testado nos modelos de cooperativas de habitação e de fundos imobiliários com impacto social”. Neste âmbito poderá ter interesse, “mas é uma franja muito curta e vai ter muito pouco impacto se se mantiver tal e qual está previsto à data de hoje”.
Para Pedro Vicente, CEO da Overseas Global, mais do que as alterações legais, “a atualidade deste nosso debate tem a ver com a escassez de habitação e com o problema que, a meu ver, já não é de urgência, mas sim de emergência no acesso à habitação”. “Nós estamos aqui a falar de terrenos, de solo, mas na perspetiva de um promotor privado o terreno é só uma parte da equação. Acresce o problema dos custos elevadíssimos da construção, a gravíssima morosidade e dificuldade dos licenciamentos”. Referindo-se às últimas alterações legislativas, considera que “a montanha pariu um rato”, pois acredita que daí “vão resultar muito poucas unidades residenciais”.
Para Neuza Pereira de Campos, sócia da SRS Legal, que encerrou a sessão, existe aqui “uma dicotomia”: por um lado, “é urgente resolver a falta de habitação” e, por outro, há “o impacto da atividade imobiliária na nossa economia”, não vendo o setor nestas alterações “um caminho para aumentar a sua atividade”. Ainda assim, “saímos deste debate com algumas boas ideias, tanto dos municípios como dos privados, em que foram também relembradas algumas soluções já experimentadas com êxito no passado”.