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Opinião

O regime do «arrendamento acessível»

Ana Afonso | Faculdade de Direito – Escola do Porto – da UCP
29-03-2021
Com o objetivo de dar resposta às necessidades habitacionais dos agregados familiares com rendimentos intermédios – as famílias cujo rendimento ultrapassa o limiar do apoio social, mas não é suficiente para aceder a uma habitação adequada ao preço de mercado –, o legislador português criou o «Programa de Arrendamento Acessível», pelo Decreto-Lei n.º 68/2019, de 22 de maio.
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Em vez de o Estado subsidiar ou apoiar o pagamento da renda, a quem não se encontra em situação de carência económica que o justifique, isenta da tributação dos rendimentos prediais os proprietários que se disponham a oferecer os seus imóveis para arrendamento a um valor inferior ao preço de mercado. Proporcionalmente à redução dos custos do arrendamento, para os senhorios, reduz-se o preço da renda. O legislador visa, pois, tornar o arrendamento uma opção mais atrativa quer do lado da oferta (pela isenção de tributação dos rendimentos prediais em IRS e IRC), quer do lado da procura (pela redução da sobrecarga com as despesas de habitação).

À versão original definida pelo Decreto-Lei n.º 68/2019 foram introduzidas algumas alterações pelo art. 9.º do Decreto-Lei n.º 81/2020, de 2 de outubro. Este quadro legal de base completa-se com as Portarias nº 175/2019, n.º 176/2019, e n.º 177/2019, todas da mesma data de 6 de junho, que vieram, respetivamente, regulamentar os requisitos de elegibilidade das candidaturas, os limites do preço da renda, e as condições dos alojamentos para inscrição no programa1. Acresce o Decreto-Lei n.º 69/2019, de 22 de maio, que estabelece o regime dos contratos de seguro de arrendamento acessível, por sua vez regulamentado pela Portaria n.º 179/2019, de 7 de junho, que fixa os requisitos imperativos das garantias de seguro.

A disponibilização de um alojamento no âmbito do Programa de Arrendamento Acessível requer (além do cumprimento dos requisitos gerais de licenciamento) a observância de certas condições mínimas de segurança, salubridade e conforto (cfr. art. 8.º, al. a), DL 68/2019 e art. 2.º, Portaria n.º 177/2019) e dos limites máximos do preço de renda aplicáveis que são calculados pela fórmula predisposta no anexo II da Portaria n.º 176/2019 (cfr. arts. 8.º, b) e 10.º, DL n.º 68/2019, e art. 3.º da Portaria n.º 176/2019). O limite de preço de renda deve corresponder a 80% do valor de referência, tendo em consideração, designadamente, área, localização e qualidade. A inscrição no Programa, que é gerido pelo IHRU, IP (cfr. art. 5.º DL n.º 68/2019), é feita mediante o preenchimento da «ficha do alojamento» com apresentação dos elementos adicionais exigidos (cfr. arts. 3.º e 4.º da Portaria n.º 177/2019), sendo emitido um certificado de inscrição do alojamento pela plataforma eletrónica do Programa.

Por seu turno, pode candidatar-se a arrendar um alojamento no âmbito do Programa de Arrendamento Acessível, um agregado familiar cujo rendimento não ultrapasse o limite fixado na Portaria n.º 175/2019 (ver anexo a que se refere o art. 2.º; por exemplo, se o agregado é composto por uma única pessoa o valor máximo a considerar para efeitos de elegibilidade é de 35 000€, sendo composto por quatro pessoas o teto é elevado para 55 000€; cfr. também arts. 12.º e ss. DL n.º 68/2019). O registo de candidatura é igualmente feito na plataforma eletrónica, mediante a apresentação dos documentos de identificação dos membros do agregado e dos respetivos rendimentos, além da indicação da modalidade de alojamento pretendida, sendo automaticamente atribuído um número de registo de candidatura (cfr. arts. 4.º e 5.º da Portaria n.º 175/2009).

Uma vez celebrado o contrato (art. 18.º DL n.º 68/2019), o seu enquadramento no PAA exige ainda o registo no portal das finanças e a contratação do seguro obrigatório (art. 19.º do mesmo diploma). Ciente de que um dos obstáculos à oferta de arrendamento é o risco do incumprimento da obrigação de pagar a renda e da deterioração do locado, o legislador português veio estabelecer a obrigação de seguro no PAA que garanta, por um lado, o pagamento ao senhorio das quantias devidas a título de renda em caso de incumprimento do contrato, além das despesas de reparação de danos no locado, atribuíveis ao arrendatário, e, por outro lado, a indemnização por quebra involuntária de rendimentos de algum dos arrendatários. Sobre o senhorio impende o dever de segurar a indemnização por falta de pagamento da renda; sobre o arrendatário, o de contratar o seguro de indemnização por danos no locado e também por quebra involuntária de rendimentos, como consequência da morte de um dos coarrendatários, da incapacidade para o trabalho ou de desemprego involuntário (cfr. arts. 3.º, 4.º e 8.º, DL n.º 69/2019).

Assumindo também o objetivo de promover a acessibilidade no arrendamento para alojamento estudantil, o regime do arrendamento acessível cria duas modalidades de arrendamento com diferentes prazos conforme a finalidade visada. Podem assim ser celebrados contratos para «residência permanente», por um prazo mínimo de cinco anos, e contratos de «residência temporária de estudantes de ensino superior», por um prazo de nove meses (art. 6.º DL n.º 68/2019).

Com o intento de otimizar a utilização do parque habitacional, admite-se que o arrendamento tenha por objeto não só um prédio urbano, uma fração autónoma ou uma parte de prédio urbano não constituído em regime de propriedade horizontal, mas também apenas uma «parte de habitação», isto é, e conforme fica definido na alínea h) do art. 4.º, DL n.º 68/2019, «o quarto situado no interior de uma habitação, compreendendo o direito de utilização de todos os espaços não afetos ao uso privativo de outros quartos». 

O PAA concilia uma componente privatística, posto que está previsto que a qualidade de senhorio seja assumida por entes privados e que os contratos obedeçam ao regime do Código Civil e do NRAU (com as especificidades da lei de arrendamento acessível), com uma componente publicista, na medida em que o senhorio pode igualmente ser um ente público, incluindo o IHRU, I.P. (cfr. art. 2.º DL n.º 68/2019), e os municípios têm a possibilidade de solicitar o enquadramento dos programas municipais de promoção de oferta para arrendamento habitacional neste programa de arrendamento acessível (cfr. arts. 23.º e ss. DL n.º 68/2019). Uma vez verificada a compatibilidade dos programas municipais pelo IHRU, I.P. (limites de renda, taxa máxima de esforço, rendimentos do agregado habitacional) procede-se a um enquadramento «simplificado» do contrato celebrado ao abrigo do programa municipal na plataforma de arrendamento acessível, com dispensa de prévia inscrição do alojamento e de registo de candidatura. No município do Porto, o programa «Porto com Sentido», criado em conformidade com o Programa de Arrendamento Acessível é promovido e gerido pela «Porto Vivo, SRU – Sociedade de Reabilitação Urbana do Porto, E.M., S.A.». Em Lisboa, o programa municipal de acesso a habitação acessível designa-se «Renda Segura».

Dada a drástica redução do movimento turístico no último ano, sem um horizonte temporal certo de retoma, os titulares de estabelecimentos de alojamento local, ponderam a oportunidade de disponibilizarem as unidades habitacionais no âmbito do PAA, tendo sido colocada a questão da necessidade de cancelamento do registo de alojamento local. Na falta de uma indicação suficientemente clara da lei de exploração dos estabelecimentos de alojamento local (Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 62/2018, de 22 de agosto), deve admitir-se que os titulares de estabelecimentos de alojamento local, interessados na conversão para arrendamento acessível, possam pedir ao Presidente da Câmara Municipal territorialmente competente a suspensão do título, tendo de proceder a atualização no Balcão Único Eletrónico e enviar a correspondente informação às plataformas eletrónicas de reservas em que estejam inscritos, e, depois de decorrido o prazo mínimo de arrendamento acessível, reiniciar, se nisso tiverem interesse, a atividade de exploração de alojamento local2.


1 Cfr. ainda as alterações introduzidas à Portaria 175/2019 pela Portaria n.º 40/2021, de 22 de fevereiro e à Portaria n.º 177/2019 pela Portaria nº 42/2021, também de 22 de fevereiro.

Consultar os arts. 5.º e 6.º, n.º 3 e n.º 5 da lei do alojamento local.