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Opinião

Ainda e sempre - as cidades

Andreia Candeias Mousinho e Francisco Lino Dias | Sócios | PLMJ
15-11-2023
We are witnessing a world that will continue to urbanize over the next three decades - from 56% in 2021 to 68% in 2050. This translates into an increase of 2.2 billion urban residents (…) cities are here to stay, and (…) the future of humanity is undoubtedly urban, but not exclusively in large metropolitan areas (In Word Cities Report 2022/Envisaging the Future of Cities, United Nations Human Settlements Programme)
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Prevê-se que, em 2050, a população mundial atinja os 9.800 milhões de pessoas e que cerca de 70% desta população viva em áreas urbanas. De acordo com os dados de final de 2022 do Banco Mundial, na Europa, quase 76% da população vive em contexto urbano. Em Portugal, a taxa de população a viver em área urbana era, segundo o INE, de 66,3% em 2020, sendo estimado o seu aumento.

Viver na cidade é viver num território que se gasta e consome, mas que, contudo, não se quer expandido. A ideia predominante de contenção urbana, parece chocar com uma população que vive e quer viver no urbano e que exige o “direito à cidade”: à cidade mais tranquila, saudável, sustentável e inteligente; à cidade que garanta qualidade de vida, mobilidade e espaço público. O desafio está em compatibilizar todos estes interesses e dinâmicas…

Olhando para as várias experiências internacionais, identifica-se não apenas um conjunto de novas tendências e conceitos, mas também uma necessidade comum. Seja em Barcelona com os seus os smart districts e os living labs, em Le Plessis-Robinson – subúrbio modernista de Paris, onde a “cidade-dormitório de habitação social” foi reabilitada em “cidade digna” –, ou no District 2020, no Dubai, onde se quer suprir todas as necessidades dos seus 145.000 residentes numa distância percorrível a pé, sempre com áreas verdes, percursos pedonais e de jogging, ciclovias, veículos autónomos e edifícios com certificação Gold ou Platinum no sistema LEED.

De facto, seja na cidade dos 15 minutos1 ou na cidade com mobilidade inteligente e planeada2  ou nos conceitos de Transit Corridor Livability3 ou Passive House (Nearly Zero Energy Buildings)4, há algo que une toda a diversidade: o desejo de preservar as cidades, reinventando-as, com inerente necessidade de políticas de desenvolvimento urbano e imobiliário que captem o investimento público e privado e que permitam ultrapassar os muitos desafios que a esse nível existem.

Atualmente, nas grandes cidades europeias existe, em simultâneo, uma sobrecarga de infraestruturas urbanas e ausência de outras, falta de espaços verdes, mas também espaços verdes degradados e não usados, resistência à construção em altura, mas também à construção em extensão, um parque habitacional antigo, de baixa qualidade, com graves problemas de eficiência energética e (numa elevada percentagem) devoluto, mas com forte resistência ao seu uso para outros fins, uma forte crise na habitação (com falta de programas de habitação acessível e uma descaracterização dos bairros tradicionais), mas substancialmente menos construção do que em décadas anteriores. Um conjunto de problemas - muitas vezes autênticos paradoxos -, que, para ser ultrapassado, impõe um conjunto muito avultado de investimentos e soluções legais nem sempre evidentes.

De facto, não é paralisando perante os desafios que estas necessidades acarretam ou criticando políticas de planeamento urbano que se gera desenvolvimento. É, ao invés, avançando com os mecanismos disponíveis e, de modo construtivo, participando na definição de outros que se mostrem adequados ou necessários, que lá se chegará.

Ao nível nacional, encontramos já alguns instrumentos relevantes para o desenvolvimento das cidades do futuro.

Desde logo, no Plano de Resolução e Resiliência (“PRR”), reconhecendo-se a existência de regimes jurídicos burocráticos e que não se compadecem com tomada de decisões rápidas nos domínios do ordenamento do território e urbanismo, disponibilizam-se verbas para investimentos nas smart cities (mais concretamente, a alocação de 60 milhões de euros ao Programa Territórios Inteligentes).

Neste contexto volta a invocar-se a necessidade de elaboração da Estratégia Nacional de Smart Cities, dirigida às autarquias locais, cidadãos e empresas. O objetivo é criar um planeamento integrado na implementação de cidades inteligentes que permita escalar projetos de pequena dimensão entre municípios e definir práticas e princípios comuns aplicáveis a todas as iniciativas em Portugal. Refira-se que em 2019 entrou em vigor um regime jurídico (Decreto-Lei n.º 126/2019, de 29 de agosto) que permite o desenvolvimento de projetos de smart cities, ao criar e autorizar a implementação dos primeiros projetos experimentais com recurso ao “direito ao desafio”, testando, em ambiente real, soluções inovadoras na gestão dos serviços públicos.

No campo da sustentabilidade, e porque a eficiência energética do atual parque habitacional carece de atualização, são previstas no PRR verbas para investimento no domínio da eficiência energética dos edifícios residenciais e públicos (EUR 610 M, ampliados para 824 M com a reprogramação ao PRR). Por outro lado, existem desde 2021 programas como a Passive House, no âmbito da qual é possível solicitar a certificação de edifícios junto da Associação Passivhaus Portugal, mediante o cumprimento da norma Passivhaus, com os respetivos requisitos de garantia de qualidade. Igualmente, estão previstos programas de financiamento – Programa de Apoio a Edifícios mais sustentáveis, Programa de apoio a condomínios residenciais – e, bem assim, benefícios fiscais - redução ou isenção da taxa de IMI, isenção de IMT, deduções em IRS com vista a incentivar o investimento privado na construção nova e reabilitação do edificado.

Não podíamos estar mais de acordo com Norman Foster quando, sobre o risco de prever o futuro das cidades, citou a lenda de basebol americano Yogi Berra, de acordo com o qual «the future ain’t what it used to be». Contudo, numa época em que as cidades e os aglomerados urbanos são a parte do território onde mais se sente a pressão demográfica, mesmo com dúvidas e incertezas sobre os exatos contornos do amanhã, é fundamental que assumamos um papel ativo neste processo contínuo e integrado de qualificação do território e das cidades, ousando com a definição e implementação de projetos efetivamente estruturantes e inovadores.


Conceito trabalhado por Carlos Moreno, professor de urbanismo franco-colombiano da Universidade de Paris, desde os anos 1990, e popularizado em 2015, durante a COP21, a conferência das Nações Unidas sobre alterações climáticas, que se traduz em viver numa zona urbana em que o local de emprego, o comércio, os espaços verdes e todos os serviços essenciais estejam a menos de 15 minutos de distância, de preferência a pé.

2 Ordenamento do território seguindo o modelo “Urban Ecological Transit Village” criado de modo a permitir uma organização institucional estreita entre o nível municipal e metropolitano (Cf. “Ordenamento do Território e Urbanismo face aos Desafios Ambientais e Energéticos – Atas do Encontro Anual da AD URBEM, p. 165-166).

Método de integração entre o transporte e o uso do solo, relocalizando as funções urbanas em função da disponibilidade de infraestruturas de transporte, de forma a minorar a dependência do automóvel. Ex. em Portugal: Cascais (Cf. “Ordenamento do Território e Urbanismo face aos Desafios Ambientais e Energéticos – Atas do Encontro Anual da AD URBEM, p. 168-172).

Projeto que tem implementação em várias cidades (Nova York, Bruxelas, Toronto, Vancouver, etc.)  em que todos os edifícios municipais novos ou reabilitados são Passive House ou em que a Passive House é já uma obrigatoriedade para todos os edifícios públicos e particulares. (Cf. https://passivehouse-international.org/index.php?page_id=501).