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Temas em Análise

Arrendamentos de Rendimento Líquido (Net Leases)

Maria Goreti Rebêlo | Consultora Sénior, Departamento Imobiliário e Turismo | PLMJ
09-04-2025
O regime português do arrendamento urbano atualmente vigente, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação que lhe foi conferida por sucessivas alterações legislativas (“NRAU”), preconiza o princípio da liberdade contratual no que diz respeito à realização e pagamento de encargos e despesas em imóveis arrendados. Este princípio é transversal ao arrendamento urbano para fins habitacionais e para fins não habitacionais, bem como à locação.

Na falta de previsão contratual expressa, o NRAU determina (a título supletivo) quais as responsabilidades alocadas ao senhorio e ao arrendatário, designadamente no que diz respeito a obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, a encargos e despesas relativos ao fornecimento de bens e serviços necessários à fruição do local arrendado, e ainda aos relativos à administração, conservação e fruição de partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum, quando o local arrendado constitui uma fração autónoma.

Assente no indicado princípio de liberdade contratual, tem-se verificado, com particular incidência nos arrendamentos urbanos para fins não habitacionais, a crescente transferência para o arrendatário de responsabilidades – que na falta de estipulação caberiam ao senhorio – respeitantes ao local arrendado. Esta estrutura de alocação de responsabilidade e de encargos e despesas reflete a experiência contratual solidificada internacionalmente (destacando-se os Estados Unidos da América como pioneiro).

Nestes países, o nível da responsabilidade financeira que o senhorio e o arrendatário pretendem assumir numa relação contratual determina o tipo de regime a contratar, que assenta, regra geral, em três categorias: (i) impostos (incluindo quaisquer responsabilidades dali decorrentes), (ii) manutenção (ordinária e extraordinária, incluindo estrutura e partes comuns) e ainda honorários de gestão do imóvel e (iii) seguros. A assunção, pelo arrendatário, de todas ou apenas algumas destas categorias determina o rendimento líquido (“net”) do senhorio e, não poucas vezes, o montante da renda.

Os arrendamentos contratualizados com base nas indicadas categorias são comummente denominados de “single net leases – N Leases”, “double net leases – NN Leases”, “triple net leases – NNN Leases” e “absolute net leases – Abs Leases”, distinguindo-se em função da variação de responsabilidade alocada ao arrendatário, que acrescerá à obrigação de pagamento da renda.

Nos “single net leases – N Leases” o arrendatário fica obrigado ao pagamento das despesas e encargos respeitantes ao fornecimento de bens e serviços necessários à fruição do local arrendado e, não raras vezes, dos impostos inerentes ao imóvel arrendado.

Nos “double net leases – NN Leases”, acresce, ainda, a responsabilidade pela contratação e pagamento de seguros, ficando o senhorio obrigado ao pagamento de todas as outras despesas. Nestes arrendamentos, o montante da renda é geralmente superior ao valor de mercado para compensar os encargos e despesas ainda assumidos pelo senhorio.

Os “triple net leases – NNN Leases”, por seu turno, são geralmente adotados em arrendamentos da totalidade do imóvel a um único arrendatário, em casos em que o imóvel foi projetado para um arrendatário específico e também em arrendamentos resultantes de operações de sale and lease back. Neste tipo contratual, o senhorio transfere a grande maioria das suas responsabilidades para a esfera do arrendatário, mantendo-se em geral na esfera daquele apenas a responsabilidade de realização e pagamento de obras de inovação ou resultantes de imposições administrativas, honorários com assistência técnica e jurídica ao senhorio. É também frequente, nestes contratos, o acordo quanto ao procedimento de pagamento das indicadas categorias de despesas, designadamente assumindo-se que várias são suportadas diretamente pelo senhorio e, posteriormente, reembolsadas pelo arrendatário.

Semelhantes aos NNN Leases, nos “absolute net leases - Abs Leases”, a totalidade das responsabilidades dos senhorios é transferida para os arrendatários que suportam, por norma, direta e integralmente todo e qualquer custo associado ao imóvel arrendado. Neste tipo contratual, as rendas são geralmente inferiores.

A rácio dos NNN Leases e Abs Leases assenta, por um lado, na vontade de maior controlo operacional do arrendatário, que consegue customizar o imóvel arrendado, os serviços e custos às suas reais necessidades. Por outro lado, principalmente para um senhorio-investidor, a adoção desta figura permite-lhe arrecadar rendimentos líquidos com reduzidas ou sem responsabilidades e custos operacionais, designadamente sem necessidade de acomodar as variações de custos e despesas relativos ao imóvel.

Na mesma linha se deve entender que, subjacente ao princípio NNN leases ou Abs leases, alguns direitos que se constituam na esfera jurídica do proprietário, relativos ao imóvel arrendado, podem ser exercidos pelo arrendatário, quando tal tenha sido expressamente acordado entre as partes, nomeadamente por referência à figura do mandato (por exemplo, acionar garantias por defeitos de obras ou de equipamentos existentes no imóvel arrendado).

No mercado português, tem sido cada vez mais usual a negociação e contratualização de NN leases e NNN Leases. No entanto, tem-se verificado o desvirtuar das referidas categorias de responsabilidades, com fundamento na sua adaptação à prática e usos do mercado português, nomeadamente no que se refere à imputação legal das responsabilidades ali incluídas.

De facto, importa ajustar as referidas categorias ao regime legal em vigor, excluindo qualquer responsabilidade cuja transmissibilidade não seja legalmente admissível no âmbito do arrendamento, bem como qualquer tipologia ou obrigação que não exista ou não seja exequível no mercado português.

No entanto, ainda que uma responsabilidade ou uma obrigação de pagamento seja legalmente imputável ao senhorio-proprietário (como acontece, por exemplo, com a obrigação de contratação de seguros quando o imóvel está sujeito ao regime da propriedade horizontal; com a responsabilidade pelo pagamento de Imposto Municipal sobre Imóveis ou Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis e outros impostos ou taxas incidentes sobre imóveis e/ou do Imposto de Selo devido pela celebração do contrato de arrendamento; com a obrigação de manutenção das condições de segurança contra risco de incêndio e implementação das medidas de autoproteção nos edifícios, entre outros) tal não significa que o respetivo cumprimento e/ou custo não é passível de transmissão para o arrendatário. Nas situações em que o cumprimento da obrigação seja atribuído ao proprietário, mas não tenha – por imperativo legal - de ser exercido apenas por este (intuito personae), o cumprimento pode ser realizado pelo arrendatário, por conta do senhorio ou, em última instância, diretamente assumido pelo senhorio e posteriormente reembolsado pelo arrendatário.

Assim, num mercado (de arrendamento) cada vez mais exigente, em particular no que se refere a finalidades não habitacionais, onde as características e as necessidades financeiras e operacionais das partes assumem preponderância e onde os investidores internacionais são muito bem-vindos, importa conhecer os conceitos internacionalmente utilizados e utilizá-los efetivamente, evitando recorrer a figuras híbridas e que os desvirtuem. Esta prática, não só permite entender as reais intenções comerciais das partes, como também facilita os processos negociais.