1. O desafio do preço
Quanto vale, afinal, um imóvel em fase de desenvolvimento, em processo de licenciamento, com potencial de reabilitação ou incertezas sobre a sua ocupação futura? Como garantir que o preço de aquisição reflete o potencial real de um ativo?
Estas são perguntas recorrentes em transações imobiliárias, e cuja resposta raramente é simples.
A dificuldade em fixar um preço justo resulta, muitas vezes, da multiplicidade de fatores imprevisíveis que afetam o valor do ativo imobiliário e a confiança entre as partes. É precisamente neste contexto que o earn out se afirma como uma ferramenta estratégica para criar valor, mitigar riscos e, em consequência, promover o consenso entre as partes.
2. Valorização dinâmica
Quando vendedor e comprador não conseguem chegar a um acordo quanto ao valor da transação, um mecanismo de earn-out pode ser uma solução eficaz para superar o impasse negocial.
Trata-se de um instrumento contratual que permite diferir parte do preço de aquisição, condicionando o seu pagamento ao cumprimento de objetivos futuros (normalmente relacionados com o desempenho do ativo imobiliário ou da sociedade-alvo). Assim, o valor total da transação só é integralmente pago se e quando as metas previamente acordadas forem atingidas.
Por exemplo, numa operação de compra e venda de um edifício de escritórios recém-construído, o vendedor –sustentado na expectativa de uma taxa de ocupação integral –, procura maximizar o preço de alienação.
Já o comprador pretende mitigar o risco de uma ocupação efetiva inferior à projetada, salvaguardando-se da possibilidade de sobrevalorização do ativo e, consequentemente, do pagamento de um preço desajustado face ao seu valor real. Acordam, assim, um preço base de €10 milhões (pago na data de fecho da transação), complementado por um earn-out de até €2 milhões, a apurar em função da ocupação efetiva do imóvel no prazo de seis meses após o fecho. O valor máximo do earn-out é devido em caso de ocupação total do imóvel, sendo ajustado proporcionalmente, até ao limite mínimo de 30% (abaixo do qual não será devido qualquer montante adicional).
Caso, no final do prazo de 6 meses, se confirme uma ocupação total do edifício (num cenário A), o comprador deverá pagar o valor máximo do earn-out: fixando o preço global da transação em €12 milhões. Num cenário B, com uma ocupação de 40%, o earn-out é ajustado proporcionalmente, resultando num pagamento adicional de €800.000 e num preço total de €10,8 milhões. Num cenário C, caso a ocupação atinja apenas 20%, mantém-se o preço nos €10 milhões pagos na data do fecho (sem earn-out).
Esta ilustração simples demonstra como este mecanismo permite alinhar incentivos, expectativas e posições, funcionando como uma ponte entre visões distintas. Mitigando o risco de sobre-pagamento para o comprador e preservando, para o vendedor, o potencial de valorização do ativo.
3. Validade jurídica e due diligence
A cláusula de earn-out é geralmente qualificada como uma condição suspensiva imprópria. Ao contrário de uma condição suspensiva tradicional, em que os efeitos do contrato ficam suspensos até à verificação do evento, no earn-out o contrato é eficaz desde a sua celebração, mas a exigibilidade de parte do preço depende da verificação de um evento futuro e incerto.
A validade do earn-out assenta, especialmente, nos seguintes requisitos legais:
a) Determinabilidade: O preço não pode ser indeterminado ou indeterminável; ou seja, deve ser possível apurá-lo com base em fatores claros, objetivos e previamente definidos, mesmo que dependentes de eventos futuros e incertos. A fórmula de cálculo do earn-out deve permitir a determinação precisa do preço no momento da verificação da condição.
b) Não-discricionariedade: A cláusula de earn-out não pode depender exclusivamente da vontade de uma das partes. Para garantir a sua validade e eficácia, é fundamental que a definição e aplicação do earn-out se baseiem em critérios objetivos e verificáveis, afastando promessas vagas e abertas de uma negociação futura (agree to agree).
c) Possibilidade e licitude do objeto: O earn-out só é válido se estiver associado a objetivos ou condições lícitas e não pode estar dependente de factos ou comportamentos contrários à lei. Por seu turno, não pode contrariar normas imperativas aplicáveis, como regras de proteção de credores.
d) Formalidade: Se o earn-out estiver inserido num contrato sujeito a forma legal especial (como, por exemplo, escritura pública), a respetiva cláusula deverá constar expressamente do texto da escritura, observando a mesma formalidade exigida para o contrato.
Esta análise evidencia a profunda interdependência entre validade jurídica e prática negocial. A robustez e eficácia do earn-out depende não só da sua qualificação teórica, mas sobretudo da sua execução prática.
A fase de due diligence assume, então, um papel crucial à negociação de um earn-out. Uma vez que é neste momento que se analisam os pressupostos e as métricas que irão sustentar o pagamento contingente. Uma análise rigorosa dos dados financeiros, operacionais e jurídicos da sociedade-alvo ou do ativo imobiliário permite identificar riscos relevantes, validar as premissas subjacentes ao earn-out e assegurar que os objetivos definidos são simultaneamente realistas e mensuráveis.
Além disso, uma preparação cuidada implica a definição clara dos indicadores de desempenho, a seleção de períodos de avaliação compatíveis com a dinâmica do ativo e a identificação de fatores externos que possam condicionar o cumprimento das metas. A recolha e validação de informação histórica e previsional é essencial para garantir a eficácia do mecanismo.
4. Entre a teoria e a prática
A negociação e redação de cláusulas de earn-out podem revelar-se complexas, dada a dificuldade em antecipar o futuro e em contabilizar todos os fatores que influenciam as metas acordadas.
Regra geral, o vendedor perde o controlo operacional do ativo, mas mantém um interesse económico muito especial na performance ativo; já o comprador assume a sua gestão e pode ter o incentivo (ou mesmo a tentação) para limitar o pagamento do earn-out. Esta tensão demonstra que, no final do dia, a eficácia do earn-out reside tanto na precisão da sua redação como na confiança entre as partes.
De facto, apesar das suas vantagens, o earn-out é frequentemente fonte de litígios entre vendedor e comprador. Por isso, é recomendável adotar boas práticas para reduzir esse risco. Das quais se destacam:
a) Indicadores claros e objetivos: Acordar metas mensuráveis, factuais e precisas, como volume de negócios, EBITDA, fluxo de caixa operacional ou marcos específicos (licenciamento, conclusão de obras, início de operação). A tendência internacional tem caminhado no sentido de se estabelecerem estruturas híbridas, que combinam indicadores financeiros e operacionais (por exemplo, atingir um EBITDA mínimo e concluir as obras).
b) Fórmulas matemáticas explícitas: Utilizar fórmulas de cálculo claras, objetivas e, sempre que possível, de aplicação direta, de modo a evitar qualquer margem de subjetividade.
c) Parâmetros temporais e quantitativos: Definir o período do earn-out e estabelecer limites (caps ou floors) ao seu valor.
d) Aspetos comportamentais e risco moral: Incluir cláusulas que restrinjam a possibilidade de uma das partes adotar comportamentos oportunistas após o fecho da transação, com o objetivo de influenciar negativamente o cumprimento das metas que determinam o pagamento do earn-out, nomeadamente:
i. Cláusulas de best/reasonable efforts: Obrigam o comprador a envidar esforços razoáveis para atingir os objetivos do earn-out, limitando comportamentos passivos ou sabotagem indireta.
ii. Covenants operacionais: Exigem que o comprador mantenha certas práticas de gestão, como operar o ativo de forma consistente com o histórico ou com um plano de negócios acordado.
iii. Cláusulas de ring-fencing: Isolam o ativo ou a operação objeto do earn-out, impedindo que decisões externas (fusões, reestruturações) prejudiquem o desempenho.
iv. Transparência e acesso à informação: Preveem auditorias independentes e acesso à contabilidade, detalhando requisitos de reporte e processos de revisão.
e) Resolução de conflitos: Incluir cláusulas de arbitragem ou peritagem, de forma clara a autoridade competente e o âmbito de atuação do terceiro designado, com o mesmo grau de precisão e rigor exigido para a definição e apuramentos das métricas do earn-out.
Dentro da amplitude e criatividade na negociação, o earn-out pode assumir diversas configurações, incluindo mecanismos de vesting, opções de compra ou venda (call / put), cláusulas de step-in, lock-in ou de manutenção e permanência das equipas do vendedor junto ao ativo – pelo menos até ao termo do prazo do earn-out. São igualmente possíveis estruturas híbridas, com componentes fixos e variáveis, diferentes frequências de pagamento (trimestral, anual ou bullet) e prazos escalonados.
Além disto, pode ser complementado com cláusulas acessórias e conexas, tais como:
• Vencimento antecipado: Cláusulas que permitam ao vendedor receber o earn-out mais cedo (accelaration clauses), caso ocorra algum evento específico (como o incumprimento do contrato ou a mudança de controlo).
• Responsabilidade / ressarcimento: Cláusulas de compensação ou de acerto de contas, que permitem ao comprador deduzir do valor do earn-out quaisquer montantes devidos pelo vendedor (como, indemnizações), funcionando como uma verdadeira garantia contratual.
5. Mais do que preço: uma ferramenta de valorização
O earn-out pode ser um mecanismo muito útil para ajustar o preço de uma transação em função do desempenho futuro dos ativos imobiliários. Isto, a par de outras alternativas, tais como: (i) retenção de preço (holdback); (ii) depósito em garantia (escrow); ou (iii) cláusulas de ajustamento de preço (adjustment clauses). A adequação do earn-out ou de cada uma destas soluções deve ser ponderada cuidadosamente em função das especificidades de cada transação.
De facto, nos últimos anos, tem-se assistido a uma evolução significativa na utilização de earn-outs em transações imobiliárias, tanto em Portugal como a nível internacional. As partes recorrem cada vez mais a métricas personalizadas, adaptadas à natureza do ativo e ao contexto do negócio, bem como a mecanismos de monitorização e auditoria mais robustos. O earn-out deixou de ser um simples mecanismo de ajuste de preço e passou a assumir um papel estratégico na gestão de risco e no alinhamento de interesses entre comprador e vendedor.
A sua eficácia depende de uma redação clara, da definição de indicadores previsíveis e da existência de mecanismos que assegurem segurança e certeza na sua execução. Para além das métricas financeiras, é essencial considerar a relação contínua entre as partes e o potencial de risco moral.
Quando bem desenhado e redigido, o earn-out deixa de ser visto como um risco potencial para se assumir como um trunfo estratégico para gerar e desbloquear valor em transações imobiliárias.